domingo, 24 de fevereiro de 2008

Normalidade inquieta Cuba sem Fidel

Estudantes vêem impasse entre modelo chinês e venezuelano; hoje, Assembléia Nacional escolhe sucessor do ditador

Paradoxos do comunismo caribenho pipocam na ilha, que aguarda em suspenso sinais do rumo futuro após renúncia do líder longevo

Efe
Cubanos participam da inauguração da estátua do papa João Paulo 2º em Santa Clara, cidade-mausoléu de Che Guevara; relação entre regime e Vaticano é a mais próxima em 49 anos


LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A HAVANA

Os 614 deputados que se reunirão hoje para abrir os trabalhos da sétima Legislatura da Assembléia Nacional do Poder Popular terão a tarefa histórica de eleger o homem que sucederá Fidel Castro depois de 49 anos de exercício contínuo e personalista do poder supremo em Cuba.
O jornal do Partido Comunista, o "Granma", esforça-se para fazer parecer que tudo está normal. "A grande mudança já a fizemos em 1959", repete, referindo-se ao ano da chegada ao poder dos revolucionários que derrubaram o ditador Fulgêncio Batista, apoiado pelos Estados Unidos.
"O povo cubano assistirá a tudo de fora. Se quiser, pela televisão", explica sem dramas a vendedora ambulante do "Granma" Rosa Fernández, negra banguela, em frente ao Capitólio cubano, réplica do original americano.
Está tudo normal em Cuba. Rosa vende o "Granma" a um peso conversível (equivalente a pouco mais de US$ 1 ou cerca de R$ 1,70) para os turistas, quando o preço escrito na capa da publicação é de 20 centavos do peso cubano (que vale menos de um vigésimo do conversível). Duas moedas nacionais convivem em Cuba.
Taxistas piratas andam normalmente pelas ruas e crianças acompanhadas pelas mães abordam os turistas pedindo-lhes de um pedaço de frango a um suco. "Pode ser um xampu também?" Cantores de ragaton (mistura caribenha de reggae com rap) desfilam pelos lobbies dos grandes hotéis com blusas de beisebol, pulseiras e colares grossos de ouro, braços inteiramente tatuados. São cubanos ostentando em um país comunista miserável. Normal.
Onde vive Fidel Castro? Ninguém sabe, mas isso também é assim faz tempo. Nem onde mora Raúl. Igual. "Os únicos que sabem onde encontrar Fidel e Raúl são Lula e Chávez", brinca a professora primária Inéz Sosa. "Isso é normal", defende.
Mas é só chegar à Feira Internacional do Livro, que acontece até hoje em um dos mais bonitos cartões-postais de Havana, a fortaleza de Las Cabañas, que se nota algo mudando.
Milhares de pessoas, escolares e jovens em sua maioria. No meio deles, uma célula universitária de um grupo inspirado por Hugo Chávez vai de um estande a outro, conversando sobre o que chama de "via democrática para o socialismo". Conversam em voz alta.

China ou Venezuela
Para Andrés, 19, a ilha está entre dois caminhos. De um lado, o modelo chinês, "ultracentralista, burocrático e capitalista". De outro, o venezuelano, que ele vê como uma via democrática que poderia ser aplicada em Cuba, "apesar do revés sofrido por Chávez no último referendo". (O referendo sobre a reforma constitucional de 2 de dezembro do ano passado foi a primeira derrota do presidente venezuelano nas urnas desde que se elegeu, em 1998).
Segundo Andrés, os dois caminhos tentam se impor -e não só na teoria. "Viu os ônibus chineses que vieram para substituir os camelos?"
Andrés se refere a um dos símbolos mais fortes da ineficiência da economia cubana, os ônibus articulados conhecidos por "camelos" -feios, com duas incríveis corcovas, desconfortáveis, sempre hiperlotados.
Estão sendo substituídos por modernos ônibus chineses, que andam por Havana com inscrições em mandarim, ostentando sua origem. E tem o petróleo, vendido baratinho pela Venezuela, com o presidente Hugo Chávez sempre presente na propaganda oficial e nos noticiários de televisão

Stalinismo caribenho
O grupo de Andrés se considera socialista, admira o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) brasileiro e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Cabelos encaracolados, branco, baixinho, Lino explica que até agora, apesar da extensão das decisões que a Assembléia Nacional deverá tomar (inclusive a eleição dos 31 membros do novo Conselho de Estado, o órgão Executivo de Cuba), não se publicou -como sempre- um só texto.
Nem "candidatos" como Raúl Castro, presidente interino desde julho de 2006 e irmão de Fidel, Carlos Lage, Felipe Pérez Roque ou Ricardo Alarcón (veja quadro nesta página) abriram o jogo sobre qual Cuba gostariam de ver nos próximos anos.
"Se isso não é stalinismo, o que é?", pergunta Lino. "É stalinismo. Caribenho, mas é", emenda a estudante de economia Isabel, camiseta negra estampada com o rosto do beatle John Lennon (ele também já teve seu período de banimento da ilha). Na camiseta, Lennon está de boina com estrelinha, em alto contraste, como se fosse um Che Guevara. Isabel aponta para um sarau que começa, alegre.
Várias classes de crianças, cerca de cem no total, uniforme bordô, a maioria negras, com livros escolares, sentam-se para ouvir poesias embaixo de árvores no espaço da União da Juventude Comunista, sob cartazes que dizem: "Ler é Crescer".
Na saída da feira, o grupo se depara com um estande decorado com pôsteres do revolucionário russo e antiestalinista Lev Davidovitch Bronstein, o Trótski (1879-1940), banido da ilha durante todo o período do domínio soviético sobre Cuba.
Para Trótski o socialismo era impossível em um só país, tinha de ser internacionalizado, ou morreria. "Que dirá em uma só ilha", ironiza Isabel.

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