domingo, 24 de fevereiro de 2008

Na esteira do sucesso de José Padilha, Fernando Meirelles e Walter Salles, uma nova geração de cineastas colhe prêmios antes de sair da faculdade

Alunos do quarto ano de cinema da Faap durante preparação do
curta-metragem de conclusão do curso na Vila Mariana


luz, câmera e diploma

por Roberto de Oliveira e Mariane Morisawa

Cena 1. Num casarão na Vila Mariana, sábado é dia de filme para uma família de 12 descendentes de italianos. Prólogo da sessão, uma festança.

Cena 2. Silêncio. O VHS começa a rodar "Ladrões de Bicicletas", de Vittorio de Sica.

Cena 3. Sem desgrudar os olhinhos da tela, um garoto de cinco anos matuta. Que fascínio é aquele que emudece crianças e adultos?

Corta. Dezenove anos mais tarde, o menininho é o rapaz Gregório Graziosi. Continua espectador de filmes, só que agora põe a mão na massa. "Descobri criança que minha paixão era o cinema italiano. Não conseguiria fazer outra coisa", diz. Aos 24 anos, já fez três curtas. O primeiro deles, "Saba", participou de Cannes no ano passado, após correr festivais mundo afora. O filme, de 16 minutos, olha em close a vida de um casal idoso, recluso, que aguarda a morte. Detalhe: os personagens são o bisavô do cineasta, Porphirio, 98, e a bisavó, Francisca, morta no ano passado, aos 103 anos.

Estudante do último ano de cinema na Faap (Fundação Armando Alvares Penteado), Gregório trabalha desde o semestre passado numa produtora, a CinemaLink Filmes. A empresa, recém-inaugurada, tem como plataforma o cinema digital. Ele integra uma nova geração que começa a se profissionalizar em um mercado em expansão, embalado pelo reconhecimento internacional de produções recentes.

Com o fim da Embrafilme na era Collor, em que o cinema nacional deixou de existir, para hoje, a diferença é brutal. São cerca de cem filmes produzidos por ano, o que implicou na profissionalização da atividade. A chance de repercussão de um filme não está mais nas mãos do diretor exclusivamente. Produtoras como a O2, a Gullane Filmes, a Dezenove, a Conspiração e a Videofilmes tornaram-se grifes que chancelam a qualidade dos projetos.

O sucesso de longas como "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles, e de "Tropa de Elite", de José Padilha, premiado com o Urso de Ouro do Festival de Berlim, no sábado 16, impulsiona a procura por carreiras relacionadas ao cinema. Na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, o curso superior de audiovisual foi o quarto com maior relação candidato-vaga em 2007: 40,09. Fica atrás apenas de jornalismo, publicidade e propaganda e relações internacionais e à frente de medicina. Foram 1.287 inscritos para 35 vagas.

Marco Dutra, 27, fez ainda na ECA o curta "O Lençol Branco", exibido na mostra Cinefondation, em Cannes. Ele entrou na faculdade em 1999, um ano depois do lançamento de "Central do Brasil", de Walter Salles, que concorreu ao Oscar de filme estrangeiro. "Já havia exemplos de filmes que diziam que cinema era uma coisa que dava para fazer no Brasil", conta . Ele aponta outras razões para a explosão de vocação para a sétima arte no país. "Hoje é uma carreira muito sedutora. As pessoas acham que é possível entrar neste mundo, ser feliz e famoso."

Sua colega de faculdade e parceira em "O Lençol Branco" e em "Um Ramo", premiado na Semana da Crítica em Cannes, Juliana Rojas, 26, encarou o desafio de um mercado ainda incipiente: "Não avaliei os riscos. Havia uma certa euforia na época da faculdade". Com um diploma na mão e várias idéias na cabeça, Juliana finaliza o curta "Vestida" e prepara, também com Marco Dutra, o longa "Trabalhar Cansa", a ser rodado no final de 2008. "Achei que ia demorar mais para fazer o filme, mas tive sorte de realizar dois curtas que ganharam reconhecimento."

Exemplos como os de Juliana e Marco embalam os sonhos de quem presta vestibular para cinema. Novos cursos foram criados, como o da Universidade Anhembi Morumbi, que forma sua primeira turma em dezembro deste ano. São cerca de 250 alunos, com a entrada de cem novos estudantes a cada ano. E pipocam cursos técnicos, de pequena duração, voltados para áreas como direção de arte e produção.

Foi esta a opção de Ciro Saboya Gomes, 23, aluno do curso técnico de operador de câmera do Senac. Filho do deputado Ciro Gomes e da senadora Patrícia Saboya, ambos pelo PSB-CE, ele mudou-se do Ceará para São Paulo para tentar se profissionalizar, depois de fazer estágio nas filmagens do longa "Zuzu Angel". "Foi o cinema que me achou. Estudava publicidade havia um ano e meio, em Fortaleza, mas estava descontente", relata Ciro, que trancou a matrícula ao aceitar o convite inesperado do diretor Sérgio Rezende. "Fui com meu pai assistir à filmagem num fim de semana. Fiquei como estava. Comprei três camisetas brancas e três pretas e pronto."

Saiu do set com uma certeza: "Quero ser produtor e diretor de documentário". Já fez o primeiro, "Antártida", e trabalhou com Patrícia Pillar, atual mulher de seu pai, no filme sobre o cantor Waldick Soriano. "O sucesso do cinema brasileiro motiva", avalia . "Não sei se dá para sobreviver de cinema, mas isso é preocupação em qualquer profissão."

Nem todos os recém-formados enveredam-se pela direção. Pierre de Kerchove, 28, concluiu o curso pela ECA no ano passado, mas optou pela fotografia. "Se você não tiver uma pessoa conhecida na área para te apadrinhar, é bem complicado ser diretor", conta ele, que, como fotógrafo, leva no currículo o prêmio geração 14plus, do Festival de Berlim, conquistado pelo curta "Café com Leite", de Daniel Ribeiro.

Tapa na telona
Para essa turma estreante, a máxima do cinema novo, uma câmera na mão e uma idéia na cabeça, se completa com os dedos no computador. Não dá para falar dessa garotada sem associá-la à internet. A web é usada para baixar filmes, divulgá-los, contatar outros cineastas, acessar blogs, pesquisar e participar de fóruns. "Hoje em dia, todo mundo pode montar um filme no computador de casa", afirma Paulo Sacramento, montador de "Amarelo Manga".

Exemplo de como a rede de computadores pode ser poderosa aliada é o sucesso do cineasta Esmir Filho, 25. Dois anos atrás, ele ganhou popularidade após colocar no YouTube o vídeo ''Tapa na Pantera''. A obra cult foi responsável pela redescoberta da veterana Maria Alice Vergueiro. No vídeo, a atriz, de 72 anos, aparece explicando por que fuma maconha.

O cineasta dirigiu uma série de vídeos para a internet, além de premiados curtas. "Sempre gostei de contar história", diz Esmir. "Aos 15 anos, quando vi pela primeira vez o filme 'Noites de Cabíria', de Fellini, me dei conta de que as imagens falam mais que a escrita. Decidi que cinema era o meu caminho."

Formado em 2004, Esmir anda empolgado. Começa a rodar seu primeiro longa em junho: "Os Famosos e os Duendes da Morte". Foi o único filme da América Latina selecionado entre 25 projetos pelo Berlinale Co-Production Market (Festival de Berlim 2008), que procura parceiros e investidores europeus e acompanha todo o processo de produção.

O filme retrata a vida de um garoto de 16 anos, fã de Bob Dylan, que assiste ao mundo pelo computador, em meio ao tédio de uma cidade do interior. O primeiro longa do cineasta será produzido pela Dezenove Som e Imagens, nome por trás de sucessos como "Bicho de Sete Cabeças", de Laís Bodansky, "Durval Discos", de Anna Muylaert, e "Cinema, Aspirinas e Urubus", de Marcelo Gomes. A propósito: todos eles, filmes de estréias desses diretores.

Sara Silveira, 57, produtora, desde 1983 no mercado cinematográfico, enxerga uma explosão de novos talentos. Segundo ela, o número de cineastas atrás de realizar o primeiro filme aumentou 70% nos últimos cinco anos. O perfil também mudou bastante. No início dos anos 00, a faixa etária dos diretores, que estreavam em longa, variava de 35 a

40 anos, diz Sara. Hoje, quem está por trás das câmeras tem 24, 25 anos. "Os jovens exibem mais disciplina que os cineastas consagrados", compara.

Para a produtora, a premiação de "Tropa de Elite" acena para um cenário favorável ao cinema brasileiro lá fora. "A comunidade internacional está interessada no Brasil. 'Tropa' vai ajudar a dar impulso na produção nacional." O bom momento da economia, os incentivos fiscais por meio de leis, como a Rouanet e a do Audiovisual, e o aumento de lançamentos corroboram o surgimento de novos talentos.

É essa a aposta de Caroline Okoshi Fioratti, 22, que desde os 12 queria ser cineasta e termina o curso de cinema neste semestre. Vai filmar "Formigas", obra de conclusão dos estudos, sobre imigração japonesa. É assistente de Carlos Cortez na Gullane Filmes há um ano e meio. "Descobri que ele estava filmando 'Querô' e fui entrevistá-lo. Ele acabou me chamando para ser sua assistente", conta ela, que já atua no próximo filme do diretor. "Foi importante cursar a faculdade e trabalhar ao mesmo tempo", avalia. "É difícil viver de cinema. Tem que amar muito."

Cartão de visita
O caminho das pedras rumo ao longa-metragem segue um modelo semelhante ao que ocorre na Fórmula 1. Nela, os pilotos dão as primeiras aceleradas no kart. No cinema brasileiro, esse veículo é o curta. Como ocorre muitas vezes nas pistas de corrida, a trajetória no cinema é quase sempre bancada pelos pais. Filho do cartunista Paulo Caruso, Paulinho, 24, concluiu o curso de cinema no ano passado.

Ele faz o balanço: "De 2002 a 2005, paguei para trabalhar. Em 2006, fiquei no empate. Só em 2007 os investimentos começaram a dar retorno". No ano passado, Paulinho voltou de Gramado (RS) com três Kikitos: melhor filme curta-metragem, melhor roteiro e melhor montagem por "Alphaville 2007 d.C.". O curta, selecionado para o festival deste ano de Tampere, na Finlândia, teve orçamento de R$ 15 mil, 80% bancado pela Faap, onde Paulinho estudava.

Eliseu Lopes Filho, 49, vice-coordenador do curso de cinema da faculdade, diz que a Faap disponibiliza equipamentos, filmes e infra-estrutura para os alunos realizarem seus curtas curriculares e de conclusão. "Caso contrário, eles não teriam condições de viabilizar os filmes." Criado em 1972, passaram pelo curso de cinema da instituição cerca de 3.000 estudantes, entre eles Beto Brant e Laís Bodansky.

Os curtas são o cartão de visita do futuro cineasta. Foi graças ao sucesso de seu filme que Paulinho foi convidado a trabalhar na produtora O2 Digital, um departamento da O2 Filmes, gigante na produção de cinema, comerciais e séries de TV, fundada por Fernando Meirelles e Paulo Morelli. Dinheiro, acredita Paulinho, ele pretende ganhar com filme publicitário. "O Fernando ensinou nossa geração que publicidade nos dá hora de set com o que existe de mais so?sticado. Você aprende a lidar com equipamentos, mão-de-obra e a queimar negativos", conta.

Viver de cinema é projeto de longo prazo, em um mercado que engatinha. O diretor de arte Cássio Amarante dá bem a idéia do que espera os futuros colegas: "As condições de trabalho não são boas. Não tem plano de saúde nem aposentadoria".

Mas o encanto do cinema embala sonhos de veteranos e de estreantes. "Existem todos esses problemas, mas é delicioso", contrapõe Cássio

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