sábado, 17 de maio de 2008

Crítica se divide sobre filme de Meirelles

O cineasta brasileiro Fernando Meirelles disse que se preparou "para a colisão" quando seu novo filme, "Ensaio sobre a Cegueira", foi convidado a abrir o 61º Festival de Cannes, o que ocorreu Quarta. O choque que Meirelles aguardava não tardou. Críticos de vários países reagiram ao longa "Ensaio sobre a Cegueira" com opiniões opostas e enfáticas, em textos publicados ontem.

O crítico do jornal britânico "The Guardian" Peter Bradshaw afirmou em seu texto que "Ensaio sobre a Cegueira" é um drama "com imagens soberbas, alucinantes de colapso urbano. Tem, em seu centro, uma verdadeira espiral de horror, ainda assim, é iluminado com delicadeza e humor. É cinema corajoso, magistral".

No diário norte-americano "Los Angeles Times", Kenneth Turan também aprovou o filme. "Na verdade, só um diretor com a particular combinação de talentos de Meirelles poderia ter levado com êxito à tela a mistura de desespero e esperança do livro [homônimo de José Saramago]", escreveu.

A revista "Hollywood Reporter", embora faça ressalvas a aspectos do filme, em resenha assinada pelo crítico Kirk Honeycutt, diz que "na adaptação do livro de Saramago para a tela, o diretor brasileiro teve um extraordinário plano visual e consideráveis desafios cinematográficos a vencer. Portanto, há muita coisa aqui [no filme] para acelerar a pulsação e envolver a mente". Honeycutt conclui que ""Ensaio sobre a Cegueira" é cinema provocador, mas também previsível: choca, mas não surpreende".

Sentimentalismo

Entre os que rechaçaram "Ensaio sobre a Cegueira" está a revista inglesa "Screen". Avaliando o filme como regular, Fionnuala Halligan diz que "Meirelles parece lutar para encontrar um tom, e "Ensaio sobre a Cegueira" fatalmente perde tensão antes da escalada para um bizarro sentimentalismo no ato final".

Ao criticar o filme na publicação americana "Variety", Justin Chang viu "impacto minimizado e excesso estilístico" no retrato do "caos pessoal e coletivo que resultaria se a humanidade perdesse o sentido da visão" e avaliou que o filme "raramente atinge a força visceral da prosa de Saramago".

Dominique Borde, do diário francês "Le Figaro", diz que o filme "prometia uma reflexão antes de se estragar numa metáfora de autodestruição".

O diário francês "Libération" classificou "Ensaio sobre a Cegueira" como "decepcionante" e publicou uma dura crítica, de Olivier Séguret, ao filme.

"O charme teórico da ambição anunciada nos primeiros minutos de "Ensaio sobre a Cegueira" se volta rapidamente contra o filme, como se Meirelles só tivesse colocado o bastão tão alto para estar certo de que passaria por baixo dele", afirma o texto.

Na introdução de sua cobertura do primeiro dia do festival, o "Libération" observa que "a maioria dos produtores e cineastas não gostam nada da situação de abrir o festival".

O incômodo, segue o texto, é com "a primeira projeção para a imprensa, julgada de alto risco. Os jornalistas chegam à Croisette com a faca entre os dentes e o filme de abertura é o alvo dessa agressividade".

Lionel Cironneau/AP
From left, Canadian actor and screenwriter Don McKellar, Brazilian actress Alice Braga, Brazilian director Fernando Meirelles, American actress Julianne Moore and Mexican actor Gael Garcia Bernal, from left, pose during a photo call for the film "Blindness" at the 61st International film festival in Cannes, southern France, on Wednesday, May 14, 2008. (AP Photo/Lionel Cironneau)

Para jornal inglês "Guardian", filme é "magistral"; o francês "Libération" o considera "decepcionante"; Fernando Meirelles (centro) posa com Don McKellar, Alice Braga, Julianne Moore e Gael Garcia Bernal

Cannes aplaude filme de Fernando Meirelles por cinco minutos

Poucas horas antes da sessão de gala de seu "Ensaio sobre a Cegueira", que inaugurou Quarta o 61º Festival de Cannes, em competição pela Palma de Ouro, o cineasta brasileiro Fernando Meirelles dizia: "Ainda acho que esse não é um bom filme para abrir o festival", dada sua história pesadamente dramática.

O tempo provou que Meirelles não tinha razão. Quando terminou a projeção de "Ensaio..." no Palácio dos Festivais, às 22h11 (17h11, no horário de Brasília), a platéia toda se pôs de pé e, nos cinco minutos seguintes, aplaudiu, voltada para Meirelles e sua equipe.

Foi a segunda vez na noite que o diretor recebeu aplausos de pé dos convidados internacionais do festival, como as atrizes Cate Blanchett, Faye Dunaway e Eva Longoria, que dividiam a platéia com boa parte do quem é quem do cinema francês.

A primeira ovação ocorreu quando o diretor chegou para a cerimônia de abertura, e sua presença foi anunciada pelo cerimonial, com a frase: "Senhoras e senhores, Fernando Meirelles". Entre uma e outra salva de palmas ao brasileiro, viu-se uma celebração ao cinema, em tom favorável aos autores que mantêm suas carreiras distantes do epicentro mercadológico da indústria (Hollywood), e seus filmes livres de ditames estéticos.

"Cartas de amor"

"O Festival de Cannes sempre seleciona grandes filmes. Vamos mandar cartas de amor a alguns deles, com o aviso aos distribuidores de que não são confidenciais", disse o ator e diretor norte-americano Sean Penn, que preside o júri desta edição. Em entrevista pela manhã, Penn ressaltara a pretensão de fazer com que os prêmios a serem concedidos por seu júri, no próximo dia 25, ajudem os filmes a "encontrar o seu público".

O ator francês Édouard Baer, mestre de cerimônias, citou a aparência de superficialidade que certos comportamentos em Cannes evocam -"os arrogantes, os que têm dentes sem sorrisos e sorrisos sem dentes"-, antes de enumerar filmes -como o vencedor de 2007, "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias", do romeno Cristian Mungiu- e encerrar com um "obrigado ao Festival de Cannes por haver seqüestrado as maiores brutalidades do mundo, em benefício da mais singular beleza".

Quem declarou oficialmente aberto o festival foi o cineasta francês Claude Lanzmann, 82, que disse ter descoberto recentemente pontos de contato entre suas idéias de cinema e as do diretor americano Quentin Tarantino, cuja obra é antípoda da sua. "Assim como a humanidade é uma só, o cinema é um só."

Pela manhã, após a primeira projeção para a imprensa de "Ensaio sobre a Cegueira", que terminou sem reações de aplauso ou vaias, Meirelles e elenco falaram aos jornalistas.

Imaginação

O diretor citou o escritor português José Saramago, autor do livro no qual o filme se baseia. "Saramago disse que o cinema destrói a imaginação e [por isso] não queria vender os direitos do livro [para a adaptação]."

Na versão de Meirelles para a trama sobre epidemia de cegueira que atinge toda uma população, exceto uma mulher (vivida pela norte-americana Julianne Moore), há momentos de breu e outros de branco total na tela, deixando a imaginação do espectador livre para preencher as cenas.

O público conta, porém, durante todo o filme com o auxílio de um som límpido e audível até os detalhes, um recurso do diretor para mostrar como se aguçam os demais sentidos dos personagens recém-cegos.

O roteirista e ator (no papel do ladrão) canadense Don McKellar disse que era também preocupação de Saramago que o filme mantivesse "o caráter alegórico" do livro, "um verdadeiro sumário do milênio", na opinião de McKellar.

A Meirelles interessava abordar "a fragilidade da nossa civilização". Para o diretor, o livro de Saramago mostra que "nós nos consideramos tão sólidos, mas, quando uma coisa desaparece [a visão], tudo colapsa".

O ator norte-americano Danny Glover, intérprete do velho com a venda, foi o mais enfático ao associar a ficção à realidade, tomando como exemplo o furacão Katrina, ocorrido em 2005 nos Estados Unidos.

"O negócio com o Katrina não é o que o governo fez ou deixou de fazer. É que aquelas pessoas [atingidas pela devastação] eram invisíveis para nós, assim como são no Iraque ou em Darfur. Nós vivemos num mundo em que não vemos pessoas", afirmou Glover.

Meirelles contabiliza "80% de críticas negativas" a "Cegueira"

Cinco dias após a exibição de "Ensaio sobre a Cegueira" na abertura do Festival de Cannes, o diretor Fernando Meirelles contabilizava, ontem, "80% de críticas negativas" a seu filme.

Meirelles passou a ouvir com freqüência a provocação: "É cegueira da crítica?". A resposta do cineasta afasta o confronto: "Não. Sou democrático. Respeito opiniões diferentes".

Mas o diretor não recua da defesa de sua obra. "Há muita experimentação nesse filme. É claro que é mais fácil seguir um caminho conhecido. Mas, por alguma razão, sempre me coloco em situações de risco", diz.

Além das experiências que fez no modo de dirigir "Ensaio sobre a Cegueira", Meirelles cita a escolha do aclamado livro do Nobel de Literatura português José Saramago como outro risco que decidiu correr deliberadamente. "Adaptar um bom livro é sempre considerado um erro. Eu sabia disso. Talvez seja algo suicida em mim."

Saramago assistirá ao filme em sessão privada hoje à noite, em Lisboa. Com a saúde frágil, o escritor foi desaconselhado pelos médicos de viajar até Cannes. "Talvez os médicos soubessem que as críticas iam ser ruins", brinca Meirelles.

Em tom sério, ele volta à questão de se arriscar e cita o "grande apoio" que tem de seus pais. "Desde sempre e ainda hoje eu tive essa sensação de que posso contar com eles, de que há alguém a quem recorrer."

À parte o apoio, Meirelles diz que "o sofrimento é um bom modo de aprender" e que "se há uma questão que o filme propõe é essa: quanto sofrimento é necessário para aprender?".

Com a repercussão em Cannes, o diretor diz ter aprendido ao menos uma coisa: "Se você tem um filme polêmico, não o leve a um festival".

"Ensaio sobre a Cegueira" é um dos 22 concorrentes à Palma de Ouro. O vencedor será conhecido no próximo dia 25.

O filme deve chegar aos cinemas no segundo semestre.

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